Inferno nos Bastidores - Quando Macaulay Culkin virou o pesadelo de Ian McEwan

Macaulay Culkin e Ian McEwan

Obrigado a todos que tiveram paciência e interesse para prestigiar a primeira postagem desse blog até o fim (sei que ficou muito longa e cansativa). O resultado acabou sendo mais positivo do que eu imaginava, o que me incentivou a continuar postando mais algumas bobagens. 

Resolvi criar um tema de postagem para o blog chamado Inferno nos Bastidores. Serão postagens para relatar histórias de produções de filmes problemáticas que poucos tenham conhecimento. Para inaugurar o tema, escolhi um clássico da minha infância que deu bastante o que falar na época do lançamento: o thriller juvenil O Anjo Malvado. O filme trouxe o astro mirim Macaulay Culkin em seu primeiro papel sério, interpretando um vilão maquiavélico.  

Me lembro até hoje de ver o trailer do filme e ficar com os olhinhos brilhando. Ver um ator que conquistou o público com seu jeito travesso e angelical interpretando um psicopata mirim foi algo um tanto inusitado. Lembro de abrir o jornal no início de 94 e ver o anúncio da estreia do filme ocupando metade de uma página. Foi meu primeiro contato com o pôster e quando tomei conhecimento que o filme estava entrando em cartaz. 

Conseguir entrar no filme foi um belo saco. A censura era 14 anos, mas estavam considerando aumentar para 16 devido ao "conteúdo sensível" da história. Eu tinha 8 anos recém completos, e no cinema da cidade da minha avó, onde eu passava minhas férias e feriados, não me deixaram entrar nem na companhia do meu pai. No fim de semana seguinte, tivemos sucesso em um shopping em Campinas. A mulher da bilheteria chamou o gerente da sala de cinema, que me olhou de testa franzida, e então olhou pro meu pai, que disse que entraria comigo e que conhecia sim a natureza do filme. Por fim, fomos autorizados. 

Depois de tanta novela nem preciso falar que esperava um filme extremamente pesado e perturbador, e que apesar de ter gostado, fiquei meio decepcionado ao ver que se tratava de um thriller bem 'sessão da tarde' (se não me engano a Globo até chegou a exibir o filme pelo menos uma vez no horário da tarde). Decepções à parte, cheguei a alugar o filme em vídeo algumas vezes. Gostava que a história girava em torno de personagens com uma idade próxima da minha e tinha um contexto mais sombrio. Com o tempo fui descobrindo outras coisas e deixando o filme de lado, e na última vez que revi, achei um thriller razoável mas bem esquecível. Porém guardo certo carinho por ele por ter feito parte da minha infância. 

Recentemente descobri o quanto a produção do filme foi problemática e confesso que achei a história mais interessante do que o filme em si. Às vésperas do lançamento, o roteirista Ian McEwan deu um extenso relato ao New York Times, contando como foi afastado de seu próprio roteiro e que sequer tinha interesse em assistir ao filme que levava seu nome.   

Criação de um novo mal

O autor inglês Ian McEwan
O autor inglês Ian McEwan.

Tragédias envolvendo crianças e pré adolescentes são comuns na bibliografia de Ian McEwan. Em seu primeiro livro The Cement Garden ("O Jardim de Cimento"), quatro irmãos precisam se tornar autossuficientes após a morte da mãe enferma. Em The Child in Time ("A Criança no Tempo"), um homem lida com o trauma do desaparecimento de sua filha pequena. E mais recentemente, com Atonement ("Reparação"), ele trabalha o caráter dúbio de uma pré adolescente que causa um grande mal. Conhecido por trabalhar temas fortes, adquiriu entre os críticos literários o codinome Ian Macabre.
McEwan já escrevia para o cinema quando foi abordado pela Fox para escrever um roteiro que explorasse o mal praticado por uma criança. O autor aceitou a proposta, desde que o filme pudesse ser mais classudo e psicológico ao invés de sensacionalista e comercial. O acordo foi feito, e segundo Ian, a história saiu fácil. O roteiro, entitulado The Good Son ("O Bom Filho"), contaria a história de um pré adolescente que iria morar temporariamente com os tios após a morte de sua mãe, e lentamente iria descobrir que seu primo de mesma idade é um psicopata. Os produtores que encomendaram o roteiro adoraram, mas os executivos de alto escalão do estúdio não viram muito retorno financeiro na ideia. "Eles queriam algo mais no estilo de A Profecia. Disseram que o roteiro como estava iria matar as pessoas de sono", comentou o autor. 

A adaptação cinematográfica de O Jardim de Cimento
Os quatro irmãos da adaptação cinematográfica de "O Jardim de Cimento" (Charlotte Gainsbourg à esquerda).

A adaptação cinematográfica de Reparação
Saiorse Ronan na premiada adaptação cinematográfica de "Reparação".

O roteiro foi então engavetado, até que caiu nas mãos da produtora independente Mary Ann Page, que adorou a história e começou a mexer pauzinhos para tirar aquilo do papel. O roteiro flutuou pelos estúdios Universal, quase entrou em pré produção, mas o projeto acabou cancelado antes de começar. Foi então que Esqueceram de Mim e O Silêncio dos Inocentes se tornaram sucessos estrondosos de bilheteria e os estúdios perceberam que tanto crianças protagonistas quanto thrillers extremos poderiam render receitas de sucesso. 
A Fox então voltou atrás e deu sinal verde ao projeto, fechando um orçamento de 15 milhões para o filme. McEwan foi trazido para polir o roteiro caso fosse necessário e Michael Lehmann, diretor do clássico cult Heathers (aqui no Brasil "Atração Mortal"), foi contratado como diretor. 
"Até o momento eu não tinha ideia por que roteiristas reclamavam tanto de Hollywood. Minha experiência tinha sido totalmente positiva. Eu e Lehmann nos demos bem, achei-o inteligente e com um ótimo gosto, Mary Steenburgen foi escalada para o papel da mãe, dois atores desconhecidos foram escalados para os papéis dos pré adolescentes, eu iria supervisionar os ensaios. Estava tudo muito bem encaminhado", lembrou o autor. 
Foi aí que Kit Culkin, pai e empresário de Macaulay Culkin, a nova máquina de fazer dinheiro preferida dos estúdios, decidiu que queria o filho no papel do vilão do filme. A ideia era ampliar as habilidades de Macaulay e mostrar que se tratava de um ator versátil, capaz de interpretar personagens mais sérios. E a Fox, que havia faturado 507 milhões com o primeiro Esqueceram de Mim, concordou de imediato. 
"Macaulay não era exatamente o que tínhamos em mente para o personagem. Lehmann o testou e não achou que ele era certo para o papel. Mas Kit Culkin estava irredutível, e caso Macaulay não estivesse em nosso filme, ele disse que não assinaria o contrato que garantia a presença do filho em Esqueceram de Mim 2", lamentou McEwan. 

Macaulay Culkin e Kit Culkin
Macaulay e seu pai Kit Culkin.

A inclusão de Macaulay fez com que a produção entrasse em hiato. O roteiro pedia que as filmagens ocorressem no inverno, e no inverno daquele ano Macaulay já estaria ocupado com as gravações de Esqueceram de Mim 2. Isso fez com que Mary Steenburgen abandonasse o filme para ir buscar outros projetos. Mas também garantiu a inclusão de Elijah Wood no papel do outro adolescente. Elijah estaria indisponível na data original das gravações mas estava disponível na nova data, no inverno do ano seguinte. 
O orçamento do filme também aumentou. Somente o salário de Macaulay seria em torno de 2 milhões, adiar a produção quase 1 ano custaria mais 4 milhões, e as incontáveis exigências de Kit Culkin no set também custaram: trailers super equipados, video games, ações de marketing específicas. Kit também exigiu que sua filha mais nova, Quinn, fosse escalada para o papel da irmã mais nova. Em determinado momento, o diretor Michael Lehmann se cansou de ter que lidar com ele e abandonou o projeto. A Fox rapidamente providenciou outro diretor, Joseph Ruben, que havia gerado bastante dinheiro para eles no ano anterior com o filme Dormindo com o Inimigo.
"Eu e Ruben nos encontramos para discutir o roteiro e ele pediu mudanças. Ele é um diretor bastante comercial e as ideias dele simplificaram o filme em vários aspectos. Também tive que cortar várias subtramas, inclusive uma envolvendo a mãe, que eu gostava muito. Mas acabamos criando um final melhor para a história", contou McEwan. 

Joseph Ruben, Elijah Wood e Macaulay Culkin em O Anjo Malvado
Joseph Ruben dirige Macaulay Culkin e Elijah Wood.

Elijah Wood e Macaulay Culkin em O Anjo Malvado
Elijah e Macaulay nos bastidores.

Ironicamente, foi só quando o projeto finalmente entrou em produção que McEwan percebeu que estava sendo cortado do processo criativo. "Ruben não retornava minhas ligações, não respondia meus faxes, sempre tinha saído quando eu ligava. Então acabei sabendo por um dos produtores que ele havia convocado outro roteirista, colega dele, para reescrever meu roteiro. Diálogos, estrutura, tudo estava sendo modificado. Fiquei furioso. Eu esperava que uma pessoa que frequentou minha casa e trabalhou comigo de maneira tão próxima durante meses, teria a decência de pelo menos me dar um telefonema para comunicar a mudança. Mesmo levando em conta o parâmetro de comportamento de Hollywood, achei um tanto baixo". 
McEwan relatou que não teve mais qualquer envolvimento com o filme depois disso. O roteirista trazido por Ruben ainda tentou partilhar crédito pelo roteiro, mas McEwan conseguiu contestar e foi creditado sozinho. "Depois me contactaram para que eu escrevesse a novelização baseada no filme, o que me encheu de horror e desespero. Declinei. Eu já havia escrito aquela história".  

Controvérsia

O filme estreou nos cinemas americanos em setembro de 1993. A recepção da crítica foi em grande parte negativa. Muitos acharam que o filme não atingia seu potencial, principalmente pela inclusão de Macaulay, que não era crível como psicopata. Alguns até sugeriram que se os atores tivessem sido trocados e Elijah interpretasse o vilão, o filme poderia ter se saído melhor. Outros acharam Macaulay a escolha errada por sua bagagem em comédias infantis, o que tornava difícil levá-lo a sério no personagem. Uma grande ironia, considerando que o estúdio priorizou justamente a inclusão do ator como garantia de sucesso do filme. 
Também foi dito que Ian McEwan estava "vendendo seu talento à Hollywood, escrevendo filmes para Macaulay Culkin". O autor respondeu amargamente que escreveu o roteiro quando Macaulay tinha 5 anos de idade. "Nem sabia quem era ele nessa época", comentou. 
Os críticos Siskel e Ebert ficaram ultrajados com o filme, chamando a produção de um exercício de irresponsabilidade de todas as pessoas envolvidas. Acharam absurdo que fosse feito um filme que expunha maldades praticadas por uma criança que nem teria idade para entender a seriedade de seus atos. 
Na Inglaterra, o filme foi proibido de ser exibido nos cinemas devido à tragédia ocorrida no início daquele ano em Liverpool. O garotinho James Bulger, de 2 anos de idade, foi levado de um shopping por dois garotos de 10 anos, enquanto sua mãe estava distraída pagando por uma compra. Os garotos levaram Bulger para um local isolado a 3 kms do shopping, e torturaram e mataram Bulger com requintes de crueldade. A censura britânica achou que o filme poderia incentivar outros casos daquele tipo, e o filme foi lançado direto em vídeo um ano depois. 
Na região de Detroit nos Estados Unidos, um grupo de garotos imitou a cena do filme em que os personagens jogam um boneco em uma estrada movimentada, causando um grande acidente de carros. Uma mulher grávida acabou se acidentando e morrendo. A tragédia fez com que essa cena fosse cortada de algumas exibições do filme na televisão. 

James Bulger e seus assassinos
O garotinho James Bulger à época de sua morte e seus assassinos.

Cena do filme que inspirou a tragédia em Detroit e passou a ser censurada na TV:


McEwan refletiu sobre a experiência alguns anos depois: "Não me afetou tanto porque tenho uma carreira paralela como escritor literário. É diferente quando você escreve um livro. Tirando algumas sugestões do editor, você é o dono do seu texto. Já um roteiro é como uma receita de comida. Ele é o estágio inicial, com todas as indicações marcadas, mas o resultado pode ser diferente do que está escrito. Foi uma experiência. Hoje em dia prefiro me envolver em projetos com orçamentos menores e com pessoas com quem eu já tenha uma certa amizade".  

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